Lei específica do contrato de seguro é a única esperança
14 de janeiro de 20158 de janeiro de 2015, 8h37
Por Ernesto Tzirulnik
O deputado federal Marcos Montes (PSD-MG) acaba de apresentar ao Congresso Nacional o Projeto de Lei 8.290/2014, que renova a tentativa de outorga da primeira lei de contrato de seguro brasileiro, luta iniciada em 2004 quando o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, então deputado federal (PT-SP), apresentou o PL 3.555/2004. O Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) esteve à frente daquele anteprojeto e também do anteprojeto que resultou no PL 8.034, do deputado Moreira Mendes (PSD-RO) e do PLS 477/2013, do senador Humberto Costa (PT-PE).
Entrevistado pela ConJur (leia aqui), o (…) e membro do conselho internacional da Associação Internacional de Direito do Seguro (Aida), diverge do IBDS quanto à necessidade de uma lei específica para os contratos de seguro. (…) considera que o Código Civil de 2002, com 50 artigos dedicados ao seguro, e as normas da autarquia federal fiscalizadora, a Susep, são o bastante para regular com modernidade o seguro, segmento que teria crescido de 0,5% para 5% do PIB nas últimas décadas.
O IBDS vem lutando desde o início do milênio por uma lei especial de contrato de seguro. Considera a lei de contrato de seguro uma “urgência urgentíssima”. O que era impostergável em 2004, quando apresentado o primeiro projeto de lei de contrato de seguro (PL 3.555/2004), agora é a “única esperança”. O leite está derramando.
(…)
A terceira observação é a de que para se avaliar se a coisa vai bem ou vai mal, adotamos uma determinada perspectiva, um “partido” como se costuma dizer. A própria visão de crescimento do setor é uma questão de partido. Na visão de partido do colega da Aida, o mercado cresce porque os números da produção de prêmio crescem. A nosso ver, o que se passa é outra coisa. Produtos de pequena utilidade social enfeitam as estatísticas. O crescimento do setor de seguros é muito festejado com base nos números aportados para a formação do PIB brasileiro. É evidente que essa função acumuladora é uma das vantagens dos sistemas de seguros nacionais. Mas não é essa própria e tipicamente a função esperada do sistema segurador.
Acaba de falecer um dos mais notórios estudiosos do risco nas sociedades contemporâneas, o sociólogo alemão Ulrich Bech, que junto a muitos outros cientistas sociais e juristas dedicou-se ao estudo do acidente nas sociedades contemporâneas, mostrando que vivemos tempos tipificados pela normalidade dos acidentes. Os acidentes caracterizam as sociedades e seu enfrentamento é necessariamente social. Todos apontam os seguros como a única técnica econômica capaz de prover a sociedade de instrumentos de defesa contra os acidentes.
Na justificação do Projeto de Lei 8.290/2014 lemos que “[a]s sociedades se caracterizam pela infortunística que apresentam e o sistema de seguros se perpetua como um importante instrumento para democratizar a proteção contra os acidentes na sociedade. Apesar de constituir-se como uma determinante ferramenta à democratização e desenvolvimento, se examinarmos o setor a partir dos tipos de seguro que permitem a muitos comemorar o seu crescimento, deparamo-nos com uma preocupante situação. Excluídos os serviços previdenciários (PGBL e VGBL), que não constituem seguros propriamente, nem são o grande motivo pelo qual se exige uma lei de contrato de seguro a que agora propomos, os números do setor se mostrarão muito concentrados em produtos de discutível utilidade social. Os seguros que mais crescem neste país, segundo os dados publicados pela Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais (CNSEG), são os seguros para proteção das instituições que concedem crédito ao consumidor (seguros prestamistas) e para alargar no tempo a garantia de produtos comercializados massivamente (garantia estendida). Enquanto isso, o seguro obrigatório de danos em acidentes de veículos (DPVAT) provê capital que mal basta para velar e enterrar as vítimas.”
Essa advertência é correta. Basta ver o que realmente acontece, por exemplo, com os seguros de danos. As estatísticas publicadas pela Federação Nacional de Seguros Gerais (FenSeg) revelam que entre 2012 e 2013 os seguros de “garantia estendida”, aqueles que prolongam no tempo as garantias de bens de consumo, com sinistralidade inexpressiva e microscópica utilidade individual ou social, cresceram 15,2% e representam, em novembro de 2013, 5,2% dos seguros de danos, enquanto que os seguros de riscos de engenharia — em pleno programa de aceleração de obras de infraestrutura, copa do mundo e olimpíadas — apresentaram um índice negativo de crescimento, ou índice de declínio, igual a -1,9%, constituindo, também em novembro de 2013, apenas 1,1% dos seguros de danos. Os números da FenSeg relativos ao período de janeiro a julho de 2014 mostram que, em comparação ao mesmo período de 2013, os seguros de riscos de engenharia tiveram uma variação negativa igual a -11,2% e os seguros de garantia estendida tiveram aumento de 11,5% e representaram 4,8% dos seguros de danos, enquanto que os médios e grandes riscos representaram apenas 3,4% e o seguro de riscos de engenharia menos de 1% (0,9%). Como se vê, falar em crescimento do mercado não significa tanto, nem em termos relativos, nem se considerarmos as funções dos seguros e as necessidades da nossa sociedade.
Mas para se falar em desenvolvimento, que é diferente de acumulação de prêmios no setor de seguro, também é necessário olhar o que acontece com os conteúdos dos seguros. E aqui o país tem perdido muito. Todos os seguros têm sofrido com a falta de um regramento adequado, simples, coerente com o sistema jurídico e com as necessidades dos consumidores. Os seguros de riscos de engenharia mal cobrem as obras de engenharia, além de declinarem. Os seguros em geral têm sido superpovoados de regras de exclusão. O conceito de agravamento de risco tem crescido assustadoramente, transformando-se no que nunca foi. A quantidade de negativas cresce arbitrariamente. Nos seguros operacionais, de engenharia, de vida, de garantia, de responsabilidade civil, enfim, o seguro parece tender a se transformar, muitas vezes, em mais um problema e não na única solução para amenizar as aflições sofridas com os sinistros.
Observe-se, ainda, que o Código de 2002 não significa nada parecido com o regramento mínimo para o seguro, nem traz, consigo, modernidade alguma. Os países em geral (Alemanha, Argentina, Bélgica, Chile, Canadá, Espanha, França, Itália, Japão, México, Perú, Portugal etc.) têm leis especiais de contrato, invariavelmente renovadas. Dessa forma, os tantos artigos do Código Civil brasileiro, mencionados como muitos e suficientes, comparativamente são “quase nada”.
A quinta observação é que a maioria dos artigos do Código Civil são ultrapassados. São regras nascidas na década de 60, elaboradas com base nos problemas que as cortes superiores discutiam à época, portanto questões dos anos 40 e 50. O mundo mudou enquanto o Projeto de Código Civil, especialmente nessa matéria, dormia em sono profundo até ser reanimado e virar lei. A jurisprudência brasileira e a doutrina securitária haviam se desenvolvido muito, quando o Código veio. Esse anacronismo acaba gerando confusões e estas acabam determinando a superprodução de normas administrativas, que estão longe de primar pela qualidade e coerência, tornando difícil para todos — seguradoras, resseguradores, segurados, corretores — o conhecimento do universo normativo securitário.
A diáspora administrativa não pode ser comemorada, ela deve ser combatida por quem pensa em segurança jurídica. Os segurados brasileiros não querem ficar sujeitos a arbitragens internacionais, caríssimas e que não produzem sequer precedentes que possam futuramente melhorar o regime jurídico do seguro. Também não querem ficar à mercê de reguladores de sinistros e outros auxiliares das seguradoras que façam juízos arbitrários e não estejam obrigados a mostrar seus relatórios. Quem contrata um seguro quer ser livre e não ficar dedicado a relatar tudo que acontece na sua vida para a seguradora, sob pena de perder o seguro pelo qual pagou preço salgado e entulhado de carregamentos, muitos deles abusivos. As viúvas e órfãos não querem ser obrigados a ter de contratar advogados e passar a vida litigando. As seguradoras não querem ficar à mercê dos resseguradores com menor compromisso com os clientes e com o próprio país. Elas e os resseguradores também não querem ficar à mercê dos humores dos funcionários do governo e da precariedade com que são produzidas as normas administrativas. Basta ler os artigos dos PLs 8.290/2014, 3.555/2004, 8.034/2010, e do PLS 477/2013, para se ver quantas são as boas soluções trazidas.
Não à toa entidades como IDEC, Brasilcon e CNI já se mobilizaram pela construção da nossa lei de seguro. Políticos dos mais diferentes partidos, como José Eduardo Cardozo, Moreira Mendes, Humberto Costa, que pararam para pensar no assunto, desvinculados dos interesses setoriais, já apresentaram seus projetos de lei, todos no mesmo e bom sentido, sem contar os Substitutivos dos deputados Ronaldo Dimas (PSDB-TO) e Leandro Sampaio (PPS-RJ) e o voto divergente do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Isso não acontece à toa. Essa luta só persiste tão intensa e profícua porque ela faz sentido, é necessária, urgente.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-jan-08/ernesto-tzirulnik-lei-contrato-seguro-unica-esperanca