O IPVA NA ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
25 de março de 2015Embora pareça, à primeira vista, um tributo com critérios e parâmetros simples, na realidade o IPVA é cercado de controvérsias. A maior liberdade que os Estados têm para legislar a seu respeito, em razão da inexistência de uma legislação federal uniformizadora de seus aspectos, acaba por resultar em legislações estaduais divergentes e conflitantes.
Um dos dilemas que permeiam o IPVA está na identificação do sujeito passivo em caso de veículo objeto de alienação fiduciária, contrato que tem por finalidade assegurar o cumprimento de obrigação assumida pelo devedor fiduciário, frente ao credor (instituição financeira) que lhe concedeu financiamento para a aquisição de um bem.
Para que se possa chegar às situações passíveis de tributação pelo IPVA é importante relembrar que o sistema jurídico é uno e o direito tributário constantemente se refere a institutos de outras áreas, sendo o vasto ramo do direito privado que abriga grande parte das regras que regem as relações potencialmente tributáveis. Não por outro motivo, o Código Tributário Nacional (CTN) veda que o legislador ordinário altere o alcance dos “institutos, conceitos e formas de direito privado”, utilizados na linguagem constitucional, para definir ou limitar competências tributárias.
No caso do IPVA, a relação jurídica eleita pelo constituinte como apta a desencadear a tributação foi a de propriedade. A prescrição normativa que regula tal relação estatui que assentada a vontade das partes, então deve ser a prerrogativa do proprietário em exercer o direito de uso, gozo e disposição do bem em relação aos demais sujeitos, que passam a ficar cometidos do dever reflexo de não turbar e de não impedir o exercício do referido direito.
A propriedade é o mais importante dos direitos reais. Todos os demais institutos do âmbito desses direitos se apresentam em relação a algum dos elementos da propriedade: exteriorização (posse e detenção), desdobramento (uso e usufruto) ou limitação (servidão e direitos reais de garantia).
A alienação fiduciária, regulamentada pelos artigos 1.361 a 1.368 do Código Civil, constitui uma modalidade de garantia de direito real. A razão de ser do instituto é conferir maior efetividade ao direito por ela protegido – satisfação de um crédito.
O credor fiduciário possui apenas o domínio resolúvel do bem, não manifestando qualquer pretensão de tomá-lo para compor seu patrimônio. Este somente pode tomar a coisa do devedor em caso de inadimplemento do débito, mas essa hipótese ainda traz uma particularidade: tomada a coisa, o credor não pode com ela permanecer. Deve proceder à venda e apropriar-se do valor correspondente ao seu crédito, mas não aproveitando eventual saldo positivo.
Como se vê, a finalidade da alienação fiduciária não é a transmissão da propriedade do bem, mas, sim, a garantia do débito objeto do contrato principal. Os bens, enquanto garantidores dos débitos contraídos por seus efetivos proprietários, assim como os respectivos frutos e rendimentos, não se comunicam com o patrimônio do credor alienante, mas, sim, com o patrimônio do devedor, que tem todos os poderes de gerência e assume os riscos pela coisa. Isto é, durante a vigência do contrato de alienação fiduciária, o devedor fiduciante é quem detém os direitos de uso e gozo do bem com ânimo de dono.
Ocorre que algumas leis estaduais, talvez pela imprecisão da expressão “propriedade fiduciária”, partem do pressuposto de que o credor alienante é o proprietário do bem alienado, incluindo as instituições financeiras como sujeito passivo dos impostos que oneram o patrimônio, como, no caso de veículos, o IPVA. Tal ângulo, pelo entendimento aqui exposto, mostra-se equivocado, vez que o credor alienante não exerce quaisquer dos direitos inerentes à propriedade, não pode usar, gozar, dispor, enfim, não possui relação direta ou indireta com a propriedade do veículo automotor.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já manifestou entendimento no sentido de que o credor da alienação fiduciária não pode ser sujeito passivo de débitos inerentes ao veículo automotor, como multas de trânsito e despesas decorrentes de infrações praticadas pelo uso do veículo (AgRg. no Ag. nº 1.192.657). Recentemente, todavia, os ministros do STJ deixaram de apreciar a discussão quanto à matéria específica do IPVA por motivos processuais (Resp nº 1.380.449), devendo o dilema ser resolvido no Supremo Tribunal Federal.
A Corte Suprema já admitiu a repercussão geral da controvérsia originada pelo pleito do município de Juiz de Fora/MG de reconhecimento da imunidade recíproca com relação a veículo adquirido através de alienação fiduciária (RE nº 727.851). Nesse caso, conforme decidido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o bem adquirido por alienação fiduciária pelo município já se encontra incorporado ao seu patrimônio e afetado às finalidades públicas, ou seja, é o ente público alienatário quem exerce a posse direta do veículo com “animus domini”, sendo, portanto, o sujeito supostamente apto a responder pelo IPVA – o que resta afastado pela imposição da imunidade. Tal situação deixa entrever claramente que o devedor fiduciário, adquirente do automóvel, é o seu real proprietário e, consequentemente, o contribuinte do imposto em tela.
Diante desse cenário, espera-se que o Judiciário solucione essa celeuma que gravita em torno do IPVA, reconhecendo-se que, em caso de alienação fiduciária, o credor não é proprietário do veículo alienado, nem com tal fato mantém relação, não podendo ser eleito como sujeito passivo do imposto que onera o patrimônio.
Fonte: http://www.valor.com.br/legislacao/3973694/o-ipva-na-alienacao-fiduciaria