Escolher câmara arbitral distinta da eleita causa a nulidade do procedimento
14 de outubro de 2014Por Arnaldo de Lima Borges Neto
A Lei 9.037/96, que dispõe sobre arbitragem, é um marco na história nacional da adoção de formas adequadas de solução de conflitos, ao permitir que os contratantes valham-se amplamente do princípio da autonomia da vontade para retirar, da jurisdição convencional do Estado-juiz, a prerrogativa, até então exclusiva, para solução de controvérsias, investindo o árbitro dos poderes para decidir o conflito.
Tirante discussões, e a par delas, acerca da natureza da arbitragem — se jurisdicional, ou não —, é certo que as partes, por obra máxima da manifestação da autonomia da vontade, preferem afastar a jurisdição convencional monopolizada pelo juiz e outorgar ao árbitro a função de decidir definitivamente litígios sobre direitos patrimoniais disponíveis.
Convencionam as partes submeter à arbitragem seus litígios, contratando-a mediante celebração de convenção de arbitragem, nela compreendidas a cláusula compromissória e o compromisso arbitral, visando a subtrair do Estado-juiz o poder de dizer o direito, podendo escolher-se a arbitragem e, surgido o litígio, realizar o compromisso arbitral, de forma que a relação jurídica sofrerá os efeitos negativos da convenção arbitral: afasta-se a interferência jurisdicional do Estado no mérito da controvérsia.
No que pese a existência de outros aspectos, também relevantes, cuja solução não foi prevista na legislação de referência, e o modo de solucioná-los, a lei de arbitragem é silente no tocante à (rara) hipótese de conflito positivo, ou negativo, de competência entre câmaras arbitrais, ou árbitros.
Com efeito, é possível surgir dúvida sobre quem detenha a competência para processar a arbitragem e julgar o conflito, seja de forma positiva (mais de uma câmara ou árbitro arvorando-se competentes), ou negativa (duas câmaras ou árbitros julgando-se incompetentes).
O Superior Tribunal de Justiça enfrentou a inédita questão do conflito de competência entre câmaras arbitrais e proferiu, pela Segunda Seção, acórdão no Conflito de Competência113.260/SP (acórdão publicado em 07/04/2011 no DJU), decidindo, a quem incumbe julgar o conflito.
(…)
Apesar de não conhecido o CC, segundo os artigos 21, 32 e 26 da Lei 9.307/96, a insistência das partes em instaurar a arbitragem perante câmara diversa da eleita na convenção arbitral resultaria na nulidade da sentença e, portanto, na impossibilidade de exigir-se o cumprimento específico da obrigação, fato ao qual os ministros não atentaram. A sentença proferida por câmara arbitral incompetente é nula, a teor dos artigos 21, caput e 32, II, ainda que o artigo 21 afirme que apenas a violação ao artigo 21, parágrafo 2º enseje a nulidade.
Ressalte-se que regra do artigo 32, II, comporta não apenas a hipótese de sentença proferida por quem não podia ser árbitro (artigos 134 e 135 do CPC, ou casos de incapacidade, v.g.), mas também situações em que a nomeação dos árbitros deu-se de modo diferente do previsto na convenção arbitral avençada.
Idêntica opinião parece ser a de Carmona [CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 2ª ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Atlas, 2004. p.321]: “se na cláusula ou compromisso as partes tiverem estipulado que o árbitro, a ser indicado por um órgão arbitral institucional ou por terceiro previamente determinado, deva obrigatoriamente preencher certas características (…) e isto não for respeitado no ato de nomeação, poderá o interessado manejar a ação de que trata o art. 33 da Lei (…).”
Ao escolherem câmara arbitral diversa da prevista na convenção de arbitragem, os árbitros nomeados, provavelmente, serão integrantes do quadro daquelas instituições e, portanto, serão diversos dos pretendidos pelas partes, o que acarretará a nulidade da arbitragem e da sentença. O mesmo se aplica à forma de escolha ou características dos árbitros, v.g..
De outra banda, apesar de o artigo 33 determinar que nas demais hipóteses previstas no artigo 21, o árbitro deverá proferir novo “laudo”, tem-se que a regra comporta, também, uma interpretação mais extensiva, nos moldes do raciocínio desenvolvido Cretella Neto [CRETELLA NETO, José. Curso de arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p.127], que aduz: “a sentença será decretada nula nos caso dos incisos I, II, VI, VII e VIII do art. 32, com exclusão, no caso, dos incisos III, IV e V, (…), pois esses incisos ensejariam perfeitamente anulação da sentença arbitral (….).”
Os “limites da convenção de arbitragem” também devem incluir a escolha da câmara arbitral e/ou árbitros e, ainda, se a arbitragem será ad hoc ou institucional; não se deve interpretar o referido inciso IV, do artigo 21, atendo-se ao objeto da arbitragem, pois se o legislador quisesse limitar a hipótese de nulidade ao objeto assim teria dito.
No mesmo sentir, colhe-se a lição de Cretella Neto [Idem, ibidem, p.123]: “a lei fala em sentença proferida fora dos limites da convenção de arbitragem, e não do pedido, ou seja, do objeto do litígio submetido. Melhor técnica seria o legislador ter indicado como motivo de nulidade de sentença, aquela ‘proferida em desacordo com o estabelecido pelas partes na cláusula compromissória e/ou compromisso arbitral’, mas não o fez” (destaques no original).
(…)
Com efeito, o STJ poderia ter adotado os seguintes argumentos e aproveitar o ensejo para melhor sedimentar as bases do acórdão paradigma: (i) admitir que não competência constitucional originária para julgar conflitos de competência entre câmaras arbitrais (art. 105, I, “b”); (ii) decidir que escolher câmara arbitral distinta da eleita na convenção de arbitragem causa a nulidade do procedimento (artigo 32, II e/ou artigo 21, IV), e, conseqüentemente, a nulidade da sentença; (iii) existência da “cláusula de eleição de foro arbitral” atrai “todas as questões decorrentes desse compromisso arbitral” e submetem-na “ao foro que seria competente para julgar o próprio contrato” (ministro João Otávio Noronha); e (iv) fixar, por analogia, a regra prevista nos artigos 6º e 7º da Lei 9.307/96, como aplicável à instauração do CC entre câmaras arbitrais a ser resolvido por juiz de primeiro grau, haja vista que são dispositivos que permitem a execução específica da convenção de arbitragem.
A decisão do STJ, se não foi embasada em votos técnicos, é bastante louvável, pois tem o condão de demonstrar a preocupação daquela Corte com os princípios da autonomia da vontade e da segurança jurídica, sendo este último de vital importância para o desenvolvimento da arbitragem no Brasil, posto ela ser internacionalmente utilizada por empresas como forma de solução rápida, especializada e sigilosa de conflitos.
É mister que o Judiciário reconheça a validade plena da autonomia da vontade visando a garantir maior segurança jurídica às relações e maior grau de previsibilidade das decisões, atenuando o chamado “risco Brasil”, preenchendo habilidosamente as lacunas da Lei 9.307/96, sem imiscuir-se no mérito das questões, afetas unicamente à arbitragem.
Neste sentido, importante passo foi dado pelo STJ ao estabelecer, em julgamento inédito, que compete ao juiz de primeiro grau conhecer do conflito de competência entre câmaras arbitrais, dando voz à lei no que ela é silente e reverberando perante a comunidade jurídica o entendimento paradigmático a ser observado nos casos futuros de semelhante jaez.
Contudo, deveria o STJ ter assentado, ainda que a matiz fosse constitucional, a impossibilidade de conhecimento do CC por ausência de previsão constitucional de competência originária do STJ para julgamento de casos desta natureza (artigo 105, I, “b”, CF/88) e estabelecido que o conflito de competência deveria ser instaurado segundo o regramento previsto nos artigos 6º e 7º da Lei 9.307/96, por aplicação da analogia.