LEI DE SA NÃO PODE SER APLICADA EM DISSOLUÇÃO PARCIAL DE SOCIEDADE LIMITADA
7 de maio de 2015O objetivo do presente estudo é demonstrar que, em matéria de dissolução parcial, a aplicação subsidiária da lei das sociedades anônimas em sociedades limitadas não pode ser aceita, devendo, neste caso, a sociedade limitada sempre recorrer às regras das sociedades simples.
A Lei das Sociedades Anônimas admite o pagamento de reembolso de sócio por força de retirada somente em decorrência de causas taxativamente expressas na lei (artigos 137, 221, 223, 236, 252 e 256). A rigorosa restrição legal dos motivos que ensejam o chamado direito de recesso tem origem na década de 1990, quando das privatizações, na tentativa de amenizar a reação dos minoritários. Não obstante tal origem (que denota um interesse político específico), pela análise das características desse tipo societário é possível fundamentar essa limitação.
A condição necessária para que um acionista possa se afastar da sociedade anônima, cabendo-lhe o direito ao reembolso, é que ele não concorde com a tomada de certas decisões, sendo, portanto, uma ferramenta de proteção aos minoritários, para que tenham como se defender de eventuais abusos dos controladores. Assim, é um direito essencial dos acionistas, não podendo ser afastado sob hipótese alguma.[1]
Para compreender o tratamento diferenciado ao que ocorre na regra geral societária prevista no Código Civil, há que se voltar às características desse tipo societário, em contraposição ao que se verifica nas demais sociedades.
Primeiramente, tem-se a natureza jurídica do ato que cria a sociedade: se contratual ou institucional. Pelo contratualismo, a vontade do grupo de sócios é o que forma o interesse da sociedade. Seu ato constitutivo tem natureza de contrato, que ajusta um feixe de vontades, criando relações jurídicas entre os sócios e relações jurídicas entre cada um dos sócios e a sociedade sendo criada. O contrato, neste caso, é plurilateral, o que permite a entrada e saída dos contratantes, sem comprometer a vigência e validade da sociedade.[2] No institucionalismo, há um interesse supra individual que formará o interesse social, de maneira que este não é regido pelo conjunto das vontades das partes, mas por uma série de interesses tutelados internamente pela sociedade (trabalhadores, consumidores, comunidade afetada pelas questões ambientais etc)[3]. Assim, as relações e os vínculos entre os sócios nascem de um ato constitutivo realizado pelos sócios fundadores, que por meio de uma assembleia geral ou por escritura pública fundam uma instituição. Os futuros sócios, simplesmente, aderirão a esta instituição, sem que nada contratem entre si. Ao se criar uma instituição, está-se criando uma organização que zela por interesses superiores aos individuais de cada membro.
A principal decorrência dessa diferença é que, em uma sociedade dita institucional, o interesse individual de cada sócio não prevalece sobre os interesses da companhia. Sendo as sociedades anônimas consideradas instituições, a insatisfação de um acionista e seu desejo de se retirar não configura preocupação da companhia, exceto se estiver a serviço de prevenir exercício abusivo de poder e resguardar direito de minoritários.
Com relação às demais sociedades, não há como fugir de sua natureza contratual. A própria lei assume a teoria contratualista no artigo 981 do CC quando expressa “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si, dos resultados.” Uma vez contratual, mecanismos de rescisão são inerentes, pois não é lícito manter alguém vinculado eternamente a qualquer relação obrigacional.
Em segundo lugar, tem-se que as sociedades são classificadas, genericamente, como sociedades de pessoas ou de capitais, porque são formadas por uma combinação de esforços individuais ou por uma combinação de recursos econômicos: se os “esforços” pessoais ou os “recursos” apresentam-se mais necessários e centrais à sobrevivência de determinada sociedade, poder-se-á classificá-la como sociedade de pessoas ou de capital, respectivamente.[4] Nas sociedades de pessoas, as características individuais, pessoais e subjetivas de cada sócio têm relevância para o sucesso do empreendimento, ou constituem a razão para aqueles sócios se associarem. Sua formação decorre do intuitu personae existente. Essa é a razão pela qual nas sociedades de pessoas a cessão de quotas a terceiros é restrita. Há razões específicas para que aquele grupo de sócios tenha se reunido — a imposição de um terceiro desconhecido (ou não desejado) pode causar o fim da sociedade.
Já as sociedades anônimas são conhecidas como sociedades de capital. Assim são chamadas porque o fator decisivo para sua existência é a contribuição de seus participantes ao seu capital social (e não seus aspectos pessoais). Não sendo essencial à sociedade anônima a pessoa do sócio, este tipo societário não apresenta qualquer impedimento à alienação a terceiros das ações, sendo estas de fácil circulação.
Se um determinado tipo societário confere a seus sócios ampla liberdade para alienar sua participação no capital social a terceiros, não há porque seu regramento garantir outras formas de saída da sociedade para fins de garantir o princípio constitucional de que ninguém está obrigado a se manter associado infinitamente. Não por outra razão, nas sociedades anônimas o instituto só existe para garantia de direitos de minoritários. Mas, se há limitação substancial à transferência de participação a terceiros, deverão ser-lhe concedidas, por lei, outras possibilidades de retirada.
Os sócios necessitam de outras formas de se desassociar, sem prejudicar a existência da sociedade (e esta foi a evolução doutrinária e jurisprudencial a que se assistiu nas últimas décadas, visto que até os anos sessenta, do Século XX, essa saída provocava a dissolução total da sociedade). Nas sociedades em que o intuitu personae forma o elo entre seus sócios, qualquer acontecimento que venha a afetá-los poderá levar à resolução, resilição ou rescisão do contrato social (dependendo da causa), pois esta característica pessoal é determinante para o estabelecimento e manutenção do vínculo societário. Por isso há necessidade de aprovação dos sócios quanto à entrada de eventuais terceiros no quadro social, dificultando a alienação de participação. Neste caso, o instituto da dissolução não serve apenas para proteção de direito de minoria, mas, principalmente, para dar a qualquer sócio condições de se desligar do quadro social quando assim entender necessário.
Pois bem. O artigo 1.053 do CC determina que a sociedade limitada rege-se, nas omissões do Capítulo IV, pelas normas da sociedade simples. Permite, em seu parágrafo único, que o contrato social preveja a regência supletiva pelas normas da sociedade anônima. Questiona-se, então, se a opção dos sócios em limitadas em apontar a Lei das Sociedades Anônimas como regra subsidiária desconstituiria a possibilidade de qualquer sócio se afastar com fulcro nas causas relacionadas pelas regras da sociedade simples, ou seja, sem ter que peregrinar pela construção jurisprudencial acerca da aplicabilidade da dissolução parcial em sociedades anônimas.
Uma vez que nem todas as causas de dissolução parcial estão previstas no Capítulo IV, onde se encontra a regulamentação das sociedades limitadas, estando parte considerável delas no Capítulo I, que rege as sociedades simples, uma leitura apressada poderia levar à conclusão que para esta matéria, a subsidiariedade da lei das sociedades anônimas poderia ser aplicada, se eleita pelos sócios.
Ocorre, entretanto, que o ato que cria a sociedade limitada é de natureza contratual. O Código Civil, por meio de remissão, determina em seu artigo 1.054 que “o contrato mencionará, no que couber, as indicações do artigo 997, e, se for o caso, a firma social”. O artigo 997 é dispositivo que rege ato constitutivo das sociedades simples. Igualmente, o dispositivo das sociedades limitadas que trata de sua dissolução total (artigo 1.087) expressamente remete às causas de dissolução da sociedade simples (artigo 1.044). Sendo a sociedade limitada regida pelas regras aplicáveis às sociedades simples quanto à sua constituição e quanto à sua dissolução total, não há como fugir da aplicação das regras da dissolução parcial nos termos e condições previstos no Código Civil. O que rege a constituição e a dissolução total é o que deve reger a resolução.
Se o ato jurídico que faz nascer a sociedade limitada é de natureza contratual, não pode ser este desconstituído — total ou parcialmente — senão por ato de mesma natureza. Neste sentido, … “Se são contratuais os vínculos constituintes da sociedade, o seu desfazimento pode guiar-se por normas e princípios inspirados no direito contratual (…) quando se trata de discutir a constituição da sociedade limitada, a sua extinção ou a rescisão do contrato social em relação a parte dos sócios, não se justifica invocar a Lei das Sociedades Anônimas, em nenhuma hipótese (nem mesmo se prevista no contrato social como supletiva do capítulo do Código Civil referente às limitadas)”.[5]
Ademais, o artigo 1.057 do CC reforça o caráter pessoal das sociedades limitadas ao exigir quórum especial para aprovação da entrada de terceiros no quadro social, o que inviabiliza a fácil circulação das quotas e exige um mecanismo legal para dissociação, sob pena de ferir o princípio constitucional que ninguém está obrigado a manter-se associado indefinidamente.
Finalmente, notar que o Código Civil de 2002 consolidou a teoria da preservação da empresa, trazendo em seu texto previsões claras a respeito da dissolução parcial, em conformidade ao que vinham interpretando os Tribunais e os juristas, positivando evolução jurídica de décadas. Verdade que o fez, fundamentalmente, no âmbito das regras gerais aplicáveis às sociedades, que são aquelas concernentes às sociedades simples, e não especificamente às sociedades limitadas. Igualmente verdade que ao dispor as regras das sociedades limitadas avizinhou-as, em muito, das sociedades anônimas. Mas ao avizinhá-las das sociedades anônimas em alguns aspectos, não se pode dizer que o fez a ponto de igualá-las. Até mesmo porque, se esta fosse a razão, não faria sentido manter as limitadas com regulamentação própria. Nesse contexto, impedir a aplicação dos dispositivos gerais das sociedades regidas pelo Código Civil à sociedade do tipo limitada e, consequentemente, impedir que um sócio se retire, simplesmente porque o contrato social prevê regência supletiva da Lei das Sociedades Anônimas seria negar a evolução da técnica jurídica.
A sociedade limitada deve necessariamente ser regida sob o enfoque de que este tipo societário é instituto criado por contrato, e o ato oposto à sua constituição deve, evidentemente, seguir os mesmos princípios de sua constituição — ou seja, contratuais. Ademais, suas quotas não são circuláveis livremente como as ações. Restringir ao sócio da limitada as causas específicas de retirada previstas para sociedade anônima é retirar-lhe um direito potestativo conquistado pela evolução doutrinária e jurisprudencial e, hoje, decorrente de lei.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-mai-06/roberta-ribas-lei-sa-nao-aplicada-limitada