Planejamento tributário, mesmo mal feito, não é o mesmo que sonegar imposto
24 de julho de 2015No âmbito da Medida Provisória 685, de 21 de julho de 2015, que chamou atenção pela instituição do Programa de Redução de Litígios Tributários — Prorelit, passaram desapercebidos, por muitos, os artigos 7º a 12, que dispõem sobre o dever do contribuinte de comunicar à Secretaria da Receita Federal do Brasil sobre a realização de planejamento fiscal. Trata-se da obrigação de informar atos e negócios jurídicos praticados no ano anterior que acarretem a redução, eliminação ou diferimento do tributo sempre que: a) tais atos não possuírem razões extratributárias relevantes; b) a forma adotada não for usual, ou se trate de negócio jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; e c) sejam previstos em ato da Secretaria da Receita Federal.
A medida, já utilizada em Portugal, se destina à prevenção e ao combate da elusão fiscal, a partir da comunicação pelo contribuinte ao Fisco de negócios que possam ser considerados abusivos. No caso da norma recém aprovada, a ausência de propósito negocial e o abuso de forma, servem de fundamento para a exigência. Além disso, a norma prevê uma autorização legal em branco para que a Fazenda Pública inclua outros casos em que a exigência será efetivada.
Não resta dúvida que a iniciativa é uma tentativa de, por via transversa, regulamentar o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), incluído pela Lei Complementar 116/01, que introduziu em nosso direito a cláusula geral antielisiva, e que não foi regulamentada desde a rejeição pelo Congresso Nacional da Medida Provisória 66/02.
Porém, ao contrário do que preconiza o dispositivo da nossa lei de normas gerais — que prevê a edição de lei ordinária que estabeleça um procedimento prévio ao lançamento para a investigação do indício, identificado pela autoridade fiscal, de abuso de direito no planejamento fiscal, possibilitando, se for o caso de confirmação das suspeitas fazendárias, a desconsideração do negócio dissimulado-, a nova medida provisória exige que o contribuinte tome a iniciativa de comunicar a existência de possíveis fragilidades nas operações por ele realizadas, quando presentes o abuso de forma e a inexistência de propósito negocial ou qualquer outro motivo que a Receita Federal resolva estabelecer.
A consequência do descumprimento do dever de informar o planejamento tributário é, segundo o artigo 12 da medida provisória, a caracterização de omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude, tendo como resultado a aplicação da multa agravada de 150% e a representação ao Ministério Público Federal para fins criminais.
Por outro lado, em caso de existência de tal declaração, ainda que a Receita Federal desconsidere as operações praticadas pelo contribuinte para fins tributários, o tributo será devido com a imposição de juros de mora, mas sem a aplicação de qualquer multa, caso haja pagamento ou parcelamento no prazo de 30 dias da intimação ao sujeito passivo.
Embora as normas em questão sejam imbuídas dos nobres propósitos baseados no necessário combate à elisão abusiva e à evasão fiscal, e procurem, em alguma medida, prestigiar a cláusula geral antielisiva do parágrafo único do artigo 116 do CTN, cuja regulamentação, que sempre defendemos, trará maior segurança jurídica ao planejamento tributário, é forçoso reconhecer que os contornos legislativos adotados em muito se afastam do mecanismo trazido ao nosso direito pela LC 104/01 e de alguns dispositivos caros à Constituição Federal, como a legalidade tributária, a capacidade contributiva e a livre iniciativa.
Em primeiro lugar, é preciso destacar que o planejamento fiscal é uma conduta inerente ao desenvolvimento regular das atividades das empresas, assegurado constitucionalmente pelo princípio da livre iniciativa (artigo 170, CF). Porém, o abuso no exercício dessa liberdade, a partir de um planejamento tributário que se afaste dos princípios mais caros à nossa ordem constitucional, é combatido por mecanismos introduzidos no direito positivo, como as cláusulas antielisivas. No entanto, a ponderação entre a liberdade de planejar as atividades econômicas e as pautas valorativas baseadas na Justiça Fiscal oferece um modelo em que o combate ao planejamento fiscal é condicionado aos certos requisitos, que devem estar conjuntamente presentes:
prática de um ato jurídico, ou um conjunto deles, cuja forma escolhida não se adequa à finalidade da norma que o ampara, ou à vontade e aos efeitos dos atos praticados pelo contribuinte;
intenção, única ou preponderante, de eliminar ou reduzir o montante de tributo devido;
identidade ou semelhança de efeitos econômicos entre os atos praticados e o fato gerador do tributo;
proteção, ainda que sob o aspecto formal, do ordenamento jurídico à forma escolhida pelo contribuinte para elidir o tributo;
forma que represente uma economia fiscal em relação ao ato previsto em lei como hipótese de incidência tributária.[1]
Contudo, ao contrário do que exige nosso ordenamento constitucional, a medida provisória em questão se contenta, para a desconsideração dos atos praticados pelo sujeito passivo, com a existência de apenas um desses elementos: a ausência de propósito negocial relevante, isoladamente considerada. Ou ainda com um conceito que vai muito além do abuso de forma, que é a utilização de forma atípica ou pouco usual. E até com qualquer outro motivo escolhido pela Receita Federal que, espera-se, seja ao menos baseado no abuso de direito.
Vale destacar que a ocorrência de qualquer desses pressupostos estabelecidos pela medida provisória, quando isoladamente considerados, é insuficiente para a caracterização do abuso de direito, pois um negócio jurídico pode ser atípico ou pouco usual justamente para se adequar aos propósitos negociais específicos das partes envolvidas. Ou pode ter como escopo preponderante a economia de tributo, mas sem que a sua efetivação seja realizada com a completa harmonia entre os seus elementos constitutivos.
É que, como observa Ernest Höhn,[2] o abuso de direito no planejamento fiscal não ocorre no âmbito do direito tributário, mas no do próprio direito privado, na medida em que o contribuinte, utilizando-se de um negócio jurídico admitido por lei, não atende às finalidades almejadas pelo legislador civil, mas a outras, que constituem objeto da hipótese de incidência tributária. Por isso, a simples motivação na economia fiscal não caracteriza esse desarranjo entre os elementos do negócio jurídico.
A desconsideração dos negócios jurídicos praticados pelos contribuintes, sem a presença dos elementos caracterizadores da elisão abusiva, acaba por se traduzir em violação do princípio da legalidade previsto no artigo 150, I da CF, na medida em que autoriza a tributação analógica a partir da oneração de uma situação praticada no plano fático que não está descrita pela norma que se pretende aplicar para fins fiscais. Da mesma forma que agride o princípio da capacidade contributiva quando admite que manifestações de riqueza sejam colhidas diretamente na realidade econômica, sem a filtragem que o Direito Tributário estabelece por meio da definição legal da hipótese de incidência.
Deste modo, a cláusula geral antielisiva se dirige tão somente contra o abuso de direito, e não em direção aos planejamentos fiscais caracterizados por apenas um dos seus elementos constitutivos. Aliás, se não há ilicitude ou abuso de direito, o ordenamento jurídico não tem como admitir a desconsideração do ato praticado pelo contribuinte com base na capacidade contributiva considerada fora das possibilidades oferecidas pela literalidade do texto da lei, pois não há que se confundir a consideração econômica do fato gerador com a teoria da interpretação econômica do fato gerador.[3]Procurar a tributação fora dos sentidos oferecidos pela lei, apenas buscando a identidade dos efeitos econômicos entre o ato praticado pelo contribuinte e a hipótese de incidência tributária é, afastando-se da moderna doutrina pós-positivista, retornar à teoria da interpretação econômica do fato gerador, tão cara aos causalistas da primeira metade do século XX, mas rejeitada nos dias atuais, mesmo nas escolas doutrinárias que não adotam a teoria da tipicidade fechada.
Por outro lado, se não bastasse a insuficiência dos critérios previstos na medida provisória para autorizar a desconsideração dos negócios jurídicos praticados pelo contribuinte, um outro ponto é de especial importância constitucional. Trata-se da exigência de comunicação do contribuinte sobre a prática de atos que possam ser caracterizados como abusivos sob pena da sua configuração como omissão com intuito de sonegação fiscal.
Nesse particular, a medida provisória confere os efeitos de evasão fiscal, que sempre parte de uma conduta ilícita, a atos que seriam, em tese, objeto da elisão abusiva. A causa de tal metamorfose seria apenas o descumprimento da obrigação acessória de comunicar a realização do planejamento fiscal.
Embora existam autorizadíssimas vozes doutrinárias[4] que defendam a identidade entre o abuso de direito e o ato ilícito, a partir da vigência do Código Civil de 2002 (artigo 187), para quem a conduta abusiva praticada pelo contribuinte é eivada de ilicitude, estando, portanto, no campo da evasão fiscal, não há que se confundir, quando aos seus pressupostos, os dois institutos, pois, embora a lei civil tenha promovido a igualdade entre o ato abusivo e o ato ilícito quanto aos efeitos, já que nos dois casos o seu reconhecimento acarretará a invalidade do ato, não esvaziou a necessidade de distinguir os dois institutos. É que persiste a diferença entre eles quanto aos requisitos para a sua configuração, uma vez que ainda é possível reconhecer que um ato formalmente abrigado por uma lei, embora não possa ser considerado ilícito, é identificado como sendo atentatório ao Direito como um todo. Assim, a contrariedade ao ordenamento jurídico, requisito indispensável para a configuração do ato ilícito, continua sendo inexigível em relação ao reconhecimento do abuso de direito.
Por esta razão, não há que se aplicar as penalidades previstas para os casos de dolo, fraude, simulação ou sonegação para os casos de elisão abusiva fundada na ausência de propósito negocial, de abuso de forma ou qualquer outra modalidade de abuso de direito que venha a ser prevista em ato da Receita Federal, ainda que o contribuinte tenha se quedado inerte quanto à declaração exigida pela medida provisória.
Como é comum aos momentos de transição, a passagem de um modelo tributário alicerçado na tipicidade fechada e no amplo espaço para qualquer elisão que não se escorrace na prática de um ato ilícito, para um sistema aberto onde é possível a desconsideração do ato praticado com abuso de direito, a partir da dissimulação do fato gerador por um ato que não se traduza necessariamente em sonegação, fraude ou simulação, não se fez sem exageros por parte dos aplicadores do direito. Esses exageros muito se devem à insistência da doutrina formalista em recusar qualquer mecanismo de combate à elisão tributária, em detrimento da pesquisa dos limites à atuação da autoridade administrativa nessa tarefa, que é inerente à função fiscal.
Tais exageros muitas vezes se fizeram presentes na sistemática desconsideração dos atos dos contribuintes, sem qualquer preocupação em pesquisar se houve a prática de atos abusivos, mas apenas verificar a existência da economia do imposto ou da forma pouco usual. Agora, quando esses equívocos são praticados pela MP 685/15, a preocupação quanto às violações à segurança jurídica dos contribuintes ganha um grau bem mais elevado.
Em outro giro, é importante destacar que a equiparação da omissão de informações quando à prática do planejamento tributário à sonegação fiscal, a partir da obrigatoriedade de declarar as condutas atípicas ou destinadas à economia do tributo, é medida que contraria o princípio da livre iniciativa, por fundar-se em dirigismo estatal na economia privada que não é passível de ser assimilado pelo discurso constitucional senão por uma roupagem obsoleta do princípio da supremacia do interesse público[5], a partir da sua utilização utilitarista violadora dos direitos fundamentais dos contribuintes.
É que a centralidade dos direitos fundamentais no Estado Social e Democrático de Direito não autoriza que o desenvolvimento das atividades empresariais tenha que se adequar a uma roupagem pré-estabelecida pelo Estado. Nessa seara, em que inexiste a prática de ato ilícito, não é tarefa fácil, tampouco segura, caracterizar, por ocasião da realização dos negócios jurídicos, e, portanto, antes de qualquer atividade estatal, se a conduta é “normal” ou atípica. Se tem propósito econômico ou se visa apenas a economia do tributo. Se constitui exercício regular de direito ou abuso de direito.
Por outro lado, nos casos da prática de atos verdadeiramente ilícitos, como o dolo, a fraude e a sonegação, que, repita-se, não se confundem com ausência de propósito negocial, abuso de forma ou abuso de direito, não se pode exigir que o sujeito passivo produza prova contra si mesmo, sem que, com isso, não seja violado o princípio da não auto-incriminação (nemo tenetur se detegere), fundado no artigo 5º, LXIII, CF e no artigo 8º, parágrafo 2º, g, do Pacto de San José da Costa Rica.
Modelo muito mais eficaz e respeitador das garantias constitucionais dos contribuintes é a regulamentação direta do parágrafo único do artigo 116 do CTN, de forma a estabelecer um procedimento, anterior ao lançamento, em que seja assegurado o contraditório e a ampla defesa, em relação aos procedimentos fiscais que apontarem indícios da prática de abuso de direito no planejamento fiscal, admitindo-se o pagamento do tributo sem multa nos casos em que as autoridades julgadoras entenderem pela inexistência de dolo, fraude, ou simulação, a despeito da desconsideração do negócio jurídico praticado com abuso de direito.
Na verdade, a razão do legislador federal ter optado pelo modelo da obrigatoriedade do dever de comunicar o planejamento fiscal em detrimento daquele preconizado pela LC 104/01 é a entronização da simplificação administrativa como objetivo mais importante da administração tributária, ainda que com prejuízo dos princípios mais importantes do sistema tributário nacional com o da legalidade e da capacidade contributiva. Porém, não se pode olvidar que, em um sistema aberto aos valores, a praticabilidade não pode aniquilar os direitos fundamentais, o que se traduziria no triunfo completo dos melodiosos acordes utilitaristas sobre a tão sonhada aspiração do Direito pela Justiça.
Afinal, planejamento tributário, ainda que mal feito, não é sonegação!
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-jul-23/ricardo-lodi-planejamento-tributario-mal-feito-nao-sonegar