CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE EM AÇÕES COLETIVAS DESAFIA LÓGICA
10 de fevereiro de 2015Ao se estudar controle judicial de constitucionalidade, logo se aprende que convivem, no Brasil, dois modelos: o difuso (e concreto), que deriva da tradição norte-americana, e o concentrado (e abstrato), que se inspira na proposta kelseniana. No controle difuso e concreto de constitucionalidade, a decisão que declara a inconstitucionalidade de uma norma é apenas incidental no processo, que cuida de discutir um conflito determinado (e não propriamente a constitucionalidade da norma). Por isso, diz-se que a declaração de inconstitucionalidade em processos subjetivos é mera questão prejudicial, que não faz coisa julgada e pode ser realizada pelo juiz competente para apreciar a lide (observando, ordinariamente, a necessidade de respeitar a reserva de Plenário nos Tribunais [artigo 97 da Constituição]). Diferentemente ocorre no controle concentrado e abstrato de constitucionalidade, que institui mecanismo próprio de avaliar a constitucionalidade da norma, sendo esse o escopo do processo que se constitui, que é de competência do Supremo Tribunal Federal e, em certas situações, dos Tribunais de Justiça. Desse modo, a decisão que declara a nulidade de certa norma, por considerá-la inconstitucional (ou declará-la constitucional), tem efeitos erga omnes.
Em síntese, (i) é lícito a qualquer juiz declarar a inconstitucionalidade incidenter tantum de uma lei, deixando de aplicá-la ao caso concreto na resolução da lide; e (ii) apenas no controle concentrado de constitucionalidade (que é exercido, no Brasil, pelo Supremo Tribunal Federal e, em certas situações, pelos Tribunais de Justiça), pode haver declaração de inconstitucionalidade que resulte na retirada definitiva da norma do mundo jurídico[1].
Desafia a lógica dos métodos de controle de constitucionalidade a realidade que se instaura com o advento das ações coletivas. Com efeito, no direito brasileiro, as sentenças proferidas em ações coletivas têm aptidão de produzir “coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator” (artigo 16 da Lei 7.347, de 1985). Em vista de tanto, é factível haver declaração incidental de inconstitucionalidade que tenha resultado prático semelhante àquele obtido no controle concentrado de constitucionalidade, dados os abrangentes efeitos potenciais da sentença proferida em ações coletivas. Haveria, por assim dizer, um possível conflito prático de decisões.
É o que se observaria, por exemplo, em uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público contra determinado benefício concedido por um Estado com base em lei estadual, reputada inconstitucional, concessiva de isenções fiscais. Conquanto o objeto do processo seja a declaração de nulidade dos benefícios concretamente concedidos, a amplitude dos efeitos da sentença faz com que se esvazie todo o conteúdo da lei, caso considerada inconstitucional. A sentença coletiva que declare incidentalmente a inconstitucionalidade da lei teria, portanto, eficácia prática semelhante à proferida em sede de controle concentrado de constitucionalidade.
Isso, certamente, gera estranhamento. Sobretudo quando se considera que, para extirpar uma lei do ordenamento jurídico em confronto com a Constituição por meio da jurisdição constitucional, é necessário ajuizar ação própria (ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade ou arguição de descumprimento de preceito fundamental) perante o Tribunal competente para dela conhecer (Supremo Tribunal Federal ou Tribunal de Justiça, em caso de controle de constitucionalidade das normas estaduais e municipais). Além disso, o sistema de controle concentrado de constitucionalidade estabelece rol taxativo de legitimados para iniciar o controle (artigo 103 da Constituição).
Para piorar a sensação de desconforto, basta pensar que a concessão de liminar, numa ação civil pública, pode ser feita pelo juiz de primeira instância e que a concessão de medida acauteladora no âmbito das ações de controle concentrado exige, a princípio, maioria qualificada do Plenário do Supremo Tribunal Federal (ou Tribunal de Justiça).
Defrontados com essa realidade, o Supremo Tribunal Federal e a doutrina têm travado, há longa data, amplo debate sobre os limites do controle difuso de constitucionalidade em sede de ação coletiva.
A favor desse controle de constitucionalidade por meio de ações coletivas, argumenta-se que a ação coletiva trouxe notável colaboração para o sistema de tutela de direitos, de modo que negar ao juiz o exercício do controle difuso de constitucionalidade (que já é exercido em outras situações) representaria uma negativa de acesso à jurisdição plena e eficaz.
Contra esse controle, defende-se que as distinções processuais entre questão prejudicial e pedido principal não conseguem afastar a realidade de que o controle de constitucionalidade difuso, quando utilizado em ações coletivas, tem enorme potencial de ter o mesmo resultado prático do controle concentrado. Dessa forma, admitir isso representaria uma usurpação de função do Supremo Tribunal Federal, a fragilização da força da lei (que se presume constitucional) e um grave atentado à estabilidade política (considerando que a lei é ato emanado do Parlamento e sancionado pelo Executivo, que constitui, salvo demonstração em contrário, uma leitura abalizada da Constituição).
Num primeiro momento, o Supremo Tribunal Federal entendeu pela impossibilidade de se utilizar ação coletiva para se fazer um controle abrangente de constitucionalidade, para evitar a conversão oblíqua do controle difuso em concentrado. Nessa linha, concluiu o STF que “não se admite ação que se intitula ação civil pública, mas, como decorre do pedido, é, em realidade, verdadeira ação direta de inconstitucionalidade de atos normativos municipais em face da Constituição Federal, ação essa não admitida pela Carta Magna”[2].
Num segundo momento, o Supremo Tribunal Federal privilegiou o sistema de tutela de direitos para admitir, com grande amplitude, a possibilidade de controle de constitucionalidade no bojo de ações coletivas (desde que a ação coletiva veiculasse uma lide e não fosse pretexto para realizar controle de constitucionalidade de lei em tese). Ilustrativo dessa orientação é o acórdão lavrado na Reclamação n.º 600, que teve a seguinte ementa:
“[…] 7. Na ação civil pública, ora em julgamento, dá-se controle de constitucionalidade da Lei nº 8024/1990, por via difusa. Mesmo admitindo que a decisão em exame afasta a incidência de Lei que seria aplicável à hipótese concreta, por ferir direito adquirido e ato jurídico perfeito, certo está que o acórdão respectivo não fica imune ao controle do Supremo Tribunal Federal, desde logo, à vista do artigo 102, III, letra b, da Lei Maior, eis que decisão definitiva de Corte local terá reconhecido a inconstitucionalidade de lei federal, ao dirimir determinado conflito de interesses. Manifesta-se, dessa maneira, a convivência dos dois sistemas de controle de constitucionalidade: a mesma lei federal ou estadual poderá ter declarada sua invalidade, quer, em abstrato, na via concentrada, originariamente, pelo STF (CF, artigo 102, I, a), quer na via difusa, incidenter tantum, ao ensejo do desate de controvérsia, na defesa de direitos subjetivos de partes interessadas, afastando-se sua incidência no caso concreto em julgamento.
8. Nas ações coletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilidade da declaração de inconstitucionalidade, incidenter tantum, de lei ou ato normativo federal ou local.
9. A eficácia erga omnes da decisão, na ação civil pública, ut artigo 16, da Lei nº 7347/1997, não subtrai o julgado do controle das instâncias superiores, inclusive do STF. No caso concreto, por exemplo, já se interpôs recurso extraordinário, relativamente ao qual, em situações graves, é viável emprestar-se, ademais, efeito suspensivo”[3].
É esse último entendimento que tem prevalecido na Corte[4], que, cabe destacar, torna presente o mencionado risco de que os efeitos de uma decisão de ação coletiva tenham o mesmo resultado prático da declaração de inconstitucionalidade proveniente de controle concentrado e abstrato[5].
Para evitar “inadmissível deformação do sistema de controle concentrado de constitucionalidade”[6], há uma solução processual esquecida pela jurisprudência do STF e que não chegou aparentemente a ser considerada pela doutrina, talvez pela falta de maior aproximação entre o direito processual e o direito constitucional.
A solução que se propõe resgata o resultado de julgamento proferido pelo Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na Reclamação n.º 2.460, ocorrida em março de 2004[7].
Coerente com sua nova orientação, o Supremo Tribunal Federal entendeu nessa oportunidade que seria possível ajuizar-se ação coletiva com a pretensão de realizar controle de constitucionalidade difuso, sem que isso representasse usurpação de competência do Supremo Tribunal Federal. Mas, de forma inovadora, concluiu que, estando em tramitação ação de controle concentrado, voltada a discutir a mesma norma impugnada na ação coletiva, deveria haver a suspensão da ação coletiva, para prevenir decisões conflitantes e resguardar in concreto a competência do Supremo Tribunal Federal[8].
Nesse julgamento, estabeleceu-se profícuo debate entre os Ministros. Primeiramente, o Ministro Gilmar Mendes explicitou sua perplexidade com a situação de haver uma ADI pendente de julgamento no STF, com pedido de liminar indeferido, e a tramitação de várias ações coletivas no controle difuso e incidental que poderiam alcançar efeito prático semelhante àquele que se pretendia obter na ADI, reduzindo o controle concentrado (e a jurisdição prestada pelo STF) à insignificância. Em outra perspectiva, o Min. Sepúlveda Pertence enfatizou a necessidade de resguardar a integridade da jurisdição proferida em sede de ação civil pública. Disso decorreu a observação do Ministro Carlos Velloso da peculiaridade do caso, no qual se divisava a existência de ações coletivas que tratavam de tema submetido ao STF no controle abstrato, a que se sucedeu a sua sugestão de que se suspendessem as ações civis públicas, com a advertência de que essa solução se aplicaria “apenas na ação civil pública, estando pendente, no Supremo Tribunal Federal, pedido de declaração de inconstitucionalidade de norma cuja inconstitucionalidade se pede também na ação civil pública, incidenter tantum”.
Essa solução tem o mérito de não criar uma vedação peremptória ao controle difuso de constitucionalidade por meio de ação coletiva. Essa vedação absoluta poderia levar a situações em que uma lei inconstitucional não encontre contestação séria por ausência de ação própria (por falta de interesse dos legitimados, por exemplo).
Ao mesmo tempo, essa solução intermediária deixa aberta a alternativa de os legitimados do artigo 103 da Constituição (presidente da República, governadores de estado, mesas das casas legislativas da União, dos estados e do DF, entidades de classe nacional) buscarem a suspensão dos efeitos concretos da ação coletiva por meio da propositura de ação de controle de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (ou Tribunal de Justiça), que poderá manter ou não os efeitos das decisões antes proferidas no processo coletivo.
Com isso, também ficam resguardadas, em concreto (e não em tese), a segurança jurídica, a separação e a harmonia dos Poderes, a competência do Supremo Tribunal Federal e a estabilidade do governo.
Na perspectiva processual, não haveria maiores celeumas. Se a declaração de inconstitucionalidade é veiculada incidentalmente na ação coletiva, ela possui natureza de questão prejudicial (e integra apenas a motivação do julgado, ex vi artigo 469, inciso III, do CPC) e, nessa qualidade, o regime processual relativo à suspensão dos processos autoriza que a ação civil pública que veicule questão constitucional já submetida à apreciação do STF (ou do TJ) o sobrestamento do feito, na forma do artigo 265, inciso IV, do CPC. Caberia, pois, a suspensão do processo coletivo por força da existência de uma questão prejudicial externa, que é objeto de outa ação.
Essa solução seria eficaz para lidar com a preocupação de obter tutela efetiva da ordem constitucional que não descure da segurança jurídica e que leve em consideração o necessário convívio entre os modelos concentrado e difuso que caracterizam o nosso sistema de controle de constitucionalidade[9]
É de estranhar-se que essa solução de esteja esquecida no vasto repertório jurisprudencial do STF e não tenha encontrado eco na doutrina e na prática judicial.
Isso pode ter decorrido de duas circunstâncias. A primeira, porque a doutrina e a prática constitucional estiveram mais preocupadas em fixar a delimitação de espaços entre os modelos concentrado e difuso do que fixar um regime de convivência entre eles. A segunda, em função de uma possível lacuna na atual doutrina processual, que não se preocupou em dispensar maiores atenções às questões prejudiciais[10], talvez em função da “pouca necessidade que os brasileiros têm de enfrentar o problema, pois, afora a prejudicialidade entre o civil e o penal, poucos são os demais casos, ao contrário do que sucede nos países europeus, nos quais a multiplicidade de jurisdições e competências provoca inúmeras dificuldades, que exigem a atenção constante dos teóricos e práticos.”[11]
Hoje, quando se fortalece a jurisdição constitucional exercida pelo STF e se anuncia uma convergência de modelos[12], podem surgir as condições teóricas e práticas para o melhor desenvolvimento desse instigante tema.
Fonte: http://www.conjur.com.br/2015-fev-07/observatorio-constitucional-controle-constitucionalidade-acoes-coletivas-desafia-logica